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Tinha ouvido falar do “leitor”, presumo que, na pós-graduação em Ciências Documentais. O “Lector” é o indivíduo que lê enquanto os operários fabricam os famosos charutos cubanos. Achei a ideia interessante. Quando fui a Cuba obviamente visitei a Partagás em Havana. Posteriormente fui a Pinar del Rio onde se fabricam os charutos com denominação de “havanos”. A visita ás fábrica tinha, para além de ver como se fabricam os charutos, o especial interesse em ouvir o “leitor”. Logo na Partagás tive essa oportunidade. A Fábrica está instalada num edifício antigo, junto ao Capitólio, e foi fundada em meados do século XIX. Uma típica industria manufactureira. Comecei a visita pelo local onde se faz a escolha e selecção dos vários tipos de folha com que se faz o tabaco e separação em vários lotes seleccionados para as várias funções que ocuparão na charuto. As folhas para a parte mais interior do charuto. As folhas que envolvem esse núcleo, e finalmente o tipo de folha que é usado para capa. das folhas. Trabalho maioritariamente feito por mulheres. A zona onde se enrolam os charutos é um grande espaço amplo e onde maioritariamente homens estão sentados lado a lado em frente a pequenas bancas individuais de madeira. Uma imagem parecida com a das oficinas de ourivesaria. Impressiona a agilidade, rapidez e exactidão com que os charutos são enrolados. Já depois de prontos há ainda dois tipos de controlo de qualidade. Um mecânico e outro humano executado por alguns homens cuja função é provar alguns charutos dos lotes que vão sendo produzidos. E a um canto do enorme salão que é a oficina, elevado por um estrado e sentado numa cadeira, lá está o leitor em frente ao microfone. A ler as notícias, comunicados, romances. Sem ter mudado muito desde o tempo em que esta maneira de ler ganhou forma. Espantei-me, deliciei-me e senti-me feliz por passar por essa experiência.
Quem melhor explica a origem do “leitor” é Alberto Manguel (1): “Não sabia nessa altura que a arte da leitura em voz alta tinha uma história longa e itinerante e que, há mais de um século, na colónia espanhola de Cuba, se estabelecera como instituição dentro dos limites rígidos da economia cubana.
O fabrico de charutos era uma das principais indústrias de Cuba desde o século XVII, mas em 1850 o clima económico alterou-se. A saturação d mercado americano, a subida da taxa de desemprego e a epidemia de cólera de 1855 convenceram muitos trabalhadores de que era necessária a criação de um sindicato para o melhoramento das suas condições . Em 1857, fundou-se uma Sociedade de Ajuda Mútua dos Trabalhadores Honestos e Tarefeiros para o benefício dos trabalhadores da indústria tabaqueira de raça branca; foi criada uma Sociedade de Ajuda Mútua semelhante a esta para os trabalhadores negros livres em 1858.”... “Em 1865, Saturnino Martínez, operário da indústria de charutos e poeta lembrou-se de publicar um jornal para os trabalhadores da indústria” ... “Com o apoio de vários intelectuais cubanos, Martínez publicou o primeiros número de La Aurora em 22 de Outubro desse ano.” ... “ não tardou a aperceber-se, o analfabetismo era o empecilho óbvio à popularidade de La Aurora” ... “Martínez lembrou-se da ideia de um leitor público. “ ... “avistou-se com os trabalhadores da fábrica El Fígaro e, após obter a permissão do proprietário, convenceu-os da utilidade da iniciativa. Um dos trabalhadores foi escolhido como leitor, o lector oficial, e os restantes pagavam-lhe do seu próprio bolso. ” ... “ A 7 de Janeiro de 1866 iniciava-se a leitura na fábrica El Fígaro. Outras fábricas acabaram por seguir o exemplo de El Fígaro.” Alberto Manguel continua a contar-nos esta maravilhosa história do leitor. A actividade foi considerada subversiva pouco tempo depois de iniciada. A 14 Maio de 1866 governo proibiu “distrair os trabalhadores” e ameaçava com julgamento os proprietários das fábricas. Apesar da proibição continuaram a realizar-se por algum tempo sessões de leitura clandestinas. “Em 1870 tinham praticamente desaparecido” .
A Guerra da Independência dos Dez Anos é iniciada por Céspedes, um proprietário agrícola cubano em 10 de Outubro 1868. Isso leva a muita emigração para os Estados Unidos onde a prática do “leitor” foi restaurada ainda em 1869.
“O material para estas leituras, escolhido previamente pelos trabalhadores (que à semelhança da época do Le Fígaro, pagavam ao lector do seu próprio bolso), ia desde panfletos políticos e livros de História até romances e colectâneas de poesia, tanto modernos como clássicos. Tinham os seus favoritos: O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, por exemplo, tornou-se uma escolha tão popular que um grupo de trabalhadores escreveu ao autor, pouco antes da morte deste, em 1870, pedindo-lhe autorização para dar o nome do herói dos eu romance a um dos charutos. Dumas consentiu.” Uma das características desta manifestação de interesse pela informação e gosto pelo romance era que o leitor “interpretasse as personagens, imitando-lhes as vozes, como um actor.”
Assim era a actividade de “lector”. Actividade que ainda hoje se mantém. Tão longe de 1866.
(1) Manguel, Alberto – Uma História da Leitura. Lisboa: Editorial Presença, 1999. pag 122 a 125
António Borges Regedor
Nas visitas ao extrangeiro aproveitei sempre para visitar bibliotecas. Ao visitar Cuba, não podia, evidentemente, deixar de me proporcionar uma visão própria das bibliotecas locais. Visitei a Biblioteca Nacional de Cuba José Martí, que faz cento e quinze anos. Bastou dizer que também era bibliotecário, para me ser oferecido o sorriso e simpatia pela consideração da visita. Curioso é que a Asociación Cubana de Bibliotecarios (ASCUBI) tem apenas vinte e sete anos. Tive também oportunidade de ver uma biblioteca de escola primária. Naturalmente não faltou a visita aos livreiros alfarrabistas, eles também parte integrante dos que na vida dedicam parte do seu tempo à preservação do património bibliográfico.
Curiosamente as fábricas de charutos estão intimamente ligadas ao património bibliográfico e à literatura. Ainda hoje existe nessas fábricas a figura do “leitor”. Ainda assisti a uma “leitura”, na altura da minha visita, muito mais ideológica que literária. Aquando da minha visita a leitura incidia mais nas notícias do quotidiano que na literatura clássica que dá nome aos charutos “Conde de Monte Cristo” do Dumas, o “Romeu e Julieta” de Shakespeare, o “Sancho Pança” de Cervantes.
Obviamente que por vários dias em Havana percorri os caminhos dos turistas e tracei outros percursos ao acaso pela cidade. Do jogging na 5ª avenida aos bairros onde a informação de interesse comunitário era feita pela comunicação afixada na parede pelos CDRs. E, claro, não podia faltar o banho em Varadero.
António Regedor
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