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Mais uma leitura de um romance de Carlos Vale Ferraz. Desta vez o “Gémeo de Ompanda”. Já tinha lido “Nó Cego”, a “Última Viúva de África”, “Que fazer Contigo Pá?” e “Angoche”. Neste livro o tema da colonização e do colonialismo, o tema da missionação e das missões laicas ou religiosas, o tema da cultura ou das culturas. Neste livro desfilam perante a nossa leitura os protagonistas Atsu, negro, gémeo, amaldiçoado e que irá ser médico virologista. Francisco Boavida, filho ilegítimo de “boas famílias do regime”, mas escondido na condição de vagabundo rico e jogador bolsista em Nova Iorque, e Aliene filha de missionários laicos, funcionária da ONU e directora de um campo de refugiados e portuguesa branca nascida em Angola. Deles diz o autor: “…são as que criei para contar uma história sobre a colonização e o colonialismo português em África…”. Tudo a postos e com vários ingredientes para um romance de emoções, reflexões e sentimentos díspares. E mais que todos a história de Aliene que “passou a constituir um trio com Atsu e Xico Boavida, sem adivinhar o que tornava Atsu diferente dos outros jovens africanos e o porquê de Xico Boavida ter sido ostracizado pela matilha das famílias mais importantes de Portugal”.
António Borges Regedor
Agosto é tempo de leitura. Na esplanada à beira mar, até mesmo na areia. Também no jardim da casa ou à beira-rio. À tarde na sombra ou à noite rejeitando os programas de televisão para totós.
Um dos meus autores portugueses de preferência é Carlos Vale Ferraz. O pseudónimo do escritor. Foi militar, e daí a facilidade com que trata, romanceando os temas dos conflitos armados e nomeadamente a África e não só. “A Estrada dos Silêncios” remete para as invasões francesas e a narrativa decorre no pós revolução democrática de 25 de Abril de 74. “A Última Viúva tem o cenário na África colonial portuguesa e a realidade incapaz de bem distinguir quer as fronteiras quer os informadores da polícia política. “Nó Cego” é a narrativa mais exclusivamente militar do autor. Remete para uma das maiores movimentações de tropas na guerra colonial e cujo resultado é bem expresso no título do romance. “Que fazer contigo, pá” é outro livro onde revemos várias figuras do pós- 25 de Abril. “Angoche” evoca a nunca esclarecida perda de um navio que fazia cabotagem em Moçambique.
Ainda uma autora portuguesa da minha preferência é Ana Cristina Silva. O primeiro livro que li dela foi “A Segunda Morte de Anna Karénina”. Seguiu-se por razão do meu interesse por assuntos de filosofia, história, sociologia, ciência e literatura no período do Al-andaluz, a “Crónica do Rei-Poeta Al-Mutamid”. O protagonista nasceu em Beja, foi Rei da Taifa de Sevilha, acabou desterrado e morreu em Marrocos. Tenho agora para ler, “Salvação” apesar de ser já de 2018.
António Borges Regedor
Angoche era o nome de um barco de cabotagem que fazia a viagem de Nacala para Pemba com carga que se diz ser armamento. Os dois portos são no norte de Moçambique e a viagem seria curta durante a noite. Saída ao fim de dia (17h30 ) e chagada de manhã (5h). Estranho que em cabotagem, navegação junto à costa, e em teatro de guerra, as autoridades portuguesas só três dias depois tomem conhecimento do desaparecimento do navio. É um agente da Pide que faz o relatório. Curiosamente o agente que mata Humberto Delgado e prepara a bomba que mata Eduardo Mondlane. E esse é o relatório que desaparece da Pide no golpe de 25 de Abril. As suspeitas são lançadas para os comunistas e o mesmo do relatório desaparecido. Os tripulantes desaparecem e nunca se soube notícia do seu paradeiro e destino. As publicações sobre o assunto na época são sucintas e as posteriores, em livro, inquinadas ideologicamente.
É sobre este cenário que Carlos Vale Ferraz escreve mais um romance. Magistralmente tal como já o tinha feito também a partir das ambiências da guerra colonial, que ele tão bem conhece, em “Nó Gego” e “A última viúva de África”. “Adensa-se o mistério do Angoche. A tripulação desaparecida.”Infrutíferas todas as tentativas para encontrar vestígios dos tripulantes, do passageiro e da baleeira desaparecida.” Pag. 26.
Neste romance, que se lê avidamente e de uma só golfada, o autor dá a ambiência de Lourenço Marques, e das movimentações de sectores militares. “Ardia a guerra no norte de Moçambique. Ardia no sul de Angola, na rodésia, Nas Nações Unidas, Na Organização da Unidade Africana , em Moscovo, em Pequim, em Nova Iorque, em Londres, e eles continuavam a frequentar os clubes – o Clube Militar, o Clube Naval, o Grémio -, a dançar nas boîtes dos hotéis Polana e Girasol, a ir à praia, à Costa do Sol, aos restaurantes, a consultar os médicos da África do Sul. “ pag 43. Deixa pistas interpretativas sobre o acontecimento. Mostra o mapa dos vários países da região e dos seus interesses, interconexões, rivalidades. “ O bloqueio não passava de uma farsa, de um faz de conta para as potências ocidentais satisfazerem o terceiro Mundo e se engalanarem de um discurso antocolonialista nas Nações Unidas.” Pag. 49. Naturalmente das movimentações das polícias e inteligence. Dos modos de vida local e muito de uma das figuras centrais dos interesses coloniais que é praticamente um segundo poder em Moçambique. “ ao contrário de Kaulza, que pensava apenas em si, Jardim, realista, possuía o sentido do tempo certo de formar um conjunto, a arte do dançarino que sobressai do elenco, mas necessita dele.” Pag 80. Jorge jardim. E tudo isto no contexto da política colonial portuguesa para a África. “em vez de aproveitar a oportunidade para preparar feitores locais, Salazar inaugurou um Ministério do Ultramar e Lisboa, de onde despachava capatazes como governadores!” pag. 81.
Espero que lhes tenha proporcionado a curiosidade na leitura de mais este excelente livro de Carlos Vale Ferraz , na Porto Editora em 2021.
António Borges Regedor
“O futuro é semeado por mão invisível. Existe sempre um Outro. “Espero por si em Pitões da Júnias.”
Mais um livro de Carlos Vale Ferraz, para a sua linha de ficção. Este pleno de alusões a factos reais que nos remetem a memória para a revolução de Abril, antecedentes e consequentes. Factos de que nos lembramos, testemunhamos, ou em que mais ou menos fomos também intervenientes, ou lugares que conhecemos. Uma escrita em palimpsesto como me parece que é toda a ficção. E o que também parece ser a opinião do escritor. “ A história contada por Violante Dutra... Ou um palimpsesto,....que o escriba raspa com uma pedra-pomes para sobre ela registar um novo texto.” p. 24
Das conspirações contra a ditadura e oposição à guerra colonial. Dos exílios. Dos sucessos e insucessos, coerências e incoerências. “ e encobrir as pegadas do seu percurso de revolucionário malsucedido” p. 11. Das vidas construídas, desconstruídas e remendadas.
Um livro que desacredita alguns lugares comuns e derruba idealismos. “Antes de nós, os ditos revolucionários, chegarmos aos bairros de barracas, às fábricas, aos campos, já os proletários tinham descoberto a felicidade nas imperiais de cerveja e nos tremoços!” p. 26,27.
Dos muitos lugares referidos, cito especialmente este que me diz bastante: “O destino final encontrava-se em Montalegre, nos limites da província de Trás-os-Montes, junto da fronteira com a Galiza, nas ruínas do antigo Mosteiro de Santa Maria , em Pitões das Júnias”. p.55
Ferraz, Carlos Vale - Que fazer contigo, pá?. Porto: Porto Editora, 2019. ISBN 978-972-0-03182-2
António Borges Regedor
Carlos Vale Ferraz, lançou em 1983 a ficção “Nó Cego”. Para mim, é a leitura deste autor, mas no sentido contrário do cronológico. Aqui dei conta em 4 de abril do ano passado, do seu mais recente romance “A Última Viúva de África (2017)”.
Este autor que também foi militar em Moçambique, coloca a acção em finais de 1969 no planalto dos Macondes, Mueda. Nome terrível para muitos portugueses. O jovem que “sentia a curiosidade dos gatos por tudo o que o rodeava e que desconhecia. De facto, jamais pensara em seguir a carreira militar.” p.28 Como tantos outros aqui estava, milicianos ou não, de arma na mão. Em pleno teatro de guerra. O nome do romance traz-me à memória a operação Nó Gordio no mesmo local. Ea história como na realidade começa antes com gente que queria ser diferente. O enfermeiro Cardoso queria ser pintor. Um dia “o professor foi levado mais uma vez para Caxias e o João Cardoso viu-se no meio da sala da mansarda, com tudo o que restava dos seus bens comuns desfeito e espalhado pelo soalho a seus pés”p. 45. É agora o enfermeiro da companhia.
“O clínico militar, um alferes miliciano mobilizado mal acabou a especialização...entrou na sala trazendo atrás de si o brigadeiro e o tenente-coronel que vinham em visita de inspecção.(...)Acendeu a luz amareladae deixou-se a fitr a cara do brigadeiro, a empalidecer enquanto observava o interior do cubículo negro. Apontou com o dedo musculado de cirurgião, sem uma termura: - Aquilo que está dentro daquele caixote, embrulhado no pano de tenda, era, ou é, já nem sei, o corpo dum daqueles a quem o senhor chama “soldadesca”.”p. 81.
“E ali estava ele só, o dólman do camuflado ainda sujo da viagem, sentado num monte de pedras como se carregasse o peso de todas as canseiras, apensar nela, a entender os poetas e a poesia – “essa pieguice”, como ela lhe dissera um dia, quando, deitados numa prais de areia fina no Algarve, ela lhe lera um poema”. p. 241
E entretanto, na cidade, longe das operações de cerco e assalto, o “Azevedo Melo tinha o programa previsto para o dia completo de cruzeiro no mar dos seus convidados, que passava por uma experiência de pesca ao corripo.” p. 258
E assim vai correndo a ficção do “Nó Cego” ou Nó Gordio, como preferirem, o desempate da guerra que não aparece, nem na ficção nem na realidade.
Abtónio Regedor
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