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São quase 11 horas. Cheguei ao Rumo na Rua N. S. de Fátima por volta das nove e meia. Marquei a presença com os conhecidos do costume, com as conversas do costume. Saio só em direcção à Rotunda. Depois à direita para a Av. de França e ainda uma outra vez à direita. Os panfletos tinham sido feitos na casa que servia de tipografia clandestina. Tínhamos lá estado dias antes. O copiador “Gestetner” era rápido e o stencil de carbono tinha vindo de França. Já não precisávamos de noites e dias seguidos a imprimir folha a folha no “vietnamita”. Essa caixa simples onde colocar a folha, baixar o caixilho do stencil, colocar tinta no rolo de borracha, passar o rolo pela caixa, e ter uma folha impressa. Se tudo corresse bem, se não sujasse os dedos e se ao pegar na folha não a marcasse com impressões digitais e a tivesse de deitar fora.
Estes tinham sido uma limpeza. Um luxo tipográfico. Tinham vindo no dia anterior de comboio dentro de numa mala vermelha. Sim, vermelha, porque não !?. Quem iria desconfiar de mais um passageiro a sair na estação da Avenida de França?
Os panfletos eram colocados no corpo, por dentro da camisa. O sobretudo arredondava as formas. Os dois camaradas aguardavam já no interior da Rotunda. Íamos para a zona das Campinas e Aldoar. Distribuir os panfletos nos vários bairros circundantes da zona industrial. “Nem Marcelo, Nem Spínola” assim era o título dos dessa noite, já a 25 de Abril de 1974.
António Borges Regedor
Hoje Dia Mundial do Livro estou a iniciar a leitura do livro “Horizontes da Ética: Para uma cidadania responsável” do meu amigo João Baptista Magalhães. É uma edição da Afrontamento em 2010. Justifica-se até pela proximidade com a data em que a ética venceu a barbárie. A comemoração do 25 de Abril de 1974.
Também hoje iniciei com o meu neto um conto a quatro mãos inspirados no tempo presente de covid.
Fomos jovens nos anos sessenta. Origens humildes. Habitações pouco confortáveis. Dificuldades económicas. Mas vencemos. Estudamos numa escola que o não era. Era a adaptação de uma casa rural a escola. Mas vencemos. Fomos homens com a ameaça da guerra. Uma guerra com um inimigo difuso, que emboscava. Um guerrilheiro desconhecido e em lugar ignorado, invisível, como agora. Mas vencemos. Aqui estamos. Fizemos uma revolução que mudou regime, política, costumes que já experimentávamos desde o tempo hippie. E vencemos. Continuamos a progredir nos respectivos empregos, estudamos ainda mais e vencemos. Apanhamos o início do século vinte e um numa crise de deflação. Esse nome com que nos assustavam nas aulas de economia política. Crise, deflação, desvalorização bolsista, desinvestimento, falência, desemprego. O cenário teórico aprendido nas aulas, apresentado ao vivo e em gráficos a preto na preta da vida. Mas vencemos. Agora confinados como reclusos, com medo de outro inimigo invisível, com saídas precárias furtivas como quem vai fazer golpe de mão ao supermercado, desviando-se dos outros como quem se desvia do inimigo, falando à distância com medo de granada, pisando o caminho com a cautela de quem evita a mina. Fechados no abrigo. Sabendo que desta vez, com mais de 65 anos, em caso de queda o nosso resgate não contará com o heli que nos ventile. Mas venceremos.
António Borges Regedor
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