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Porque hoje é dia de onda poética na biblioteca de espinho, deixo aqui o que pensava da poesia quem a escreveu com mestria.
Persistência da poesia
Crónica de Manuel António Pina, na revista “Visão”, em 7 de Junho de 2007
A poesia é um mistério incompreensível. Porque escrevem as pessoas poesia? E porque a lêem ou ouvem outras pessoas? Eu sei que pode escrever-se poesia (o que quer que "poesia" signifique) por muitos motivos, nem todos respeitáveis.
Ao longo da História, a poesia tem servido um pouco para tudo, seja ut doceat, ut moveat aut delectet, que é como quem diz "para ensinar, comover ou deleitar" (a fórmula tem 500 anos e é de Rudolfo Agrícola) seja para enaltecer e louvar ou, se não para ganhar a vida, ao menos para fazer por ela.
Hoje, como provam os programas de Língua Portuguesa da dra. Maria de Lurdes Rodrigues, a poesia é coisa perfeitamente dispensável no ensino e qualquer telenovela comove e deleita mais gente que um poema de Cesário ou de Herberto; por outro lado, já ninguém encomenda um poema para eternizar os seus feitos (a verdade é que também faltam feitos que mereçam ser eternizados) nem nenhuma dama se deixa seduzir com protestos de amor decassilábicos e metáforas. Quanto a ganhar a vida estamos falados; com raras excepções, os livros de versos vendem umas poucas centenas de exemplares e só editores suicidas se metem em tal negócio. Há tempos, um editor punha a uma selecta audiência de poetas a seguinte pergunta: como se edita poesia e se tem uma pequena fortuna ao fim de uns anos? A resposta é: começando com uma grande fortuna. No entanto, continua a haver gente a escrever poesia e gente a editá-la. E gente a ler ou a ouvir poesia.
Na semana passada realizou-se em Maiorca o Festival de Poesia do Mediterrâneo (outro mistério: por todo o lado continuam a realizar-se festivais de poesia). Havia poetas catalães, castelhanos, asturianos, árabes, portugueses.
Na última noite, 500 ou 600 pessoas ouviram ler poemas em línguas que não conheciam. Muitas vezes (pelo menos no caso do árabe e do português) não faziam a mínima ideia do que falavam os poetas. Mas escutavam como se participassem numa celebração cujo significado estivesse além (ou aquém) das palavras.
Que procuravam ali aquelas pessoas? Só a "música das palavras"? Mas a poesia não é música, é um pouco menos e um pouco mais que música. É certo que também não é apenas sentido mas algo entre uma coisa e outra ou ambas ao mesmo tempo, "música do sentido", como diz Castoriadis, e talvez, quem sabe?, alguma forma de sentido que a música possa fazer. Como os outros, também eu escutava. Às vezes julgava reconhecer uma palavra e agarrava-me a ela como um náufrago até a perder algures fora e dentro de mim, ou percebia uma sonoridade dolorosa, uma inflexão irónica, uma invectiva (em árabe, meu Deus!, que mais podia eu perceber?), e isso me bastava para, por um momento, me sentir absurdamente feliz.
Talvez, quem sabe, a poesia seja alguma espécie obscura de religião, talvez ela própria seja uma língua estrangeira falada em regiões distantes e interiores, talvez escrevendo poesia e lendo e ouvindo poesia estejamos perto de algo maior do que nós ou do nosso exacto tamanho. Porque alguma razão há-de haver para a persistência da poesia mesmo em tempos tão pouco gloriosos como os nossos.
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